Por David Duarte Lima
Sancionado em setembro de 1997, o Código de Trânsito Brasileiro entrou em vigor em janeiro de 1998. Era uma esperança para combater a violência no trânsito. Nessa lei, o que impressionava e assustava os motoristas era o elevado valor das multas. Com a imprensa dando ampla cobertura, o código teve impacto imediato na sociedade. Era fácil constatar a mudança de comportamento dos condutores, a moderação da velocidade, a atenção redobrada. Porém, desde a entrada em vigor da nova lei, os valores nominais das multas continuaram os mesmos. De 1998 para cá, a inflação foi de cerca de 180%, o que equivale dizer que o valor real foi reduzido a um terço. As multas não assustam mais.
Apesar de o Código de Trânsito preconizar outras penalidades, como advertência por escrito, suspensão do direito de dirigir, apreensão do veículo, cassação da carteira de habilitação e frequência em curso de reciclagem, o instrumento mais adotado para coibir comportamentos perigosos ou inadequados no trânsito são as multas. Segundo entendimento popular, elas são eficazes porque atingem a parte mais sensível do corpo humano: o bolso.
O valor das multas deve ser fixado obedecendo pelo menos a dois critérios. O primeiro é o da gravidade. Quanto maior a periculosidade da infração, isto é, quanto maior o potencial de dano, maior o valor da pena. O segundo é que, mesmo para comportamentos de baixo poder ofensivo, o valor da multa tem de ser suficientemente alto para desestimular o cometimento de infrações. Porém apenas o valor elevado das multas não é capaz de inibir comportamentos perigosos. A fiscalização é imprescindível. Multas pesadas com fiscalização ineficiente não reduzem significativamente a violência no trânsito.
Agora, o valor das multas para algumas infrações de alto risco foi fortemente elevado. A multa por ultrapassar em local proibido passa de R$ 191,54 para R$ 957,70; ultrapassar pelo acostamento sobe de R$ 127,69 para R$ 957,70; forçar ultrapassagem de risco vai dos atuais R$ 191,54 para R$ 1.915,40; exibir manobra perigosa ou disputar racha sobe de R$ 574,62 para R$ 1.915,40. Evidentemente os valores são suficientes para fazer qualquer condutor pensar duas vezes antes de cometer a infração. Mas haverá fiscalização?
A presença da fiscalização aumenta a probabilidade de flagrar motoristas infratores. De que adiantam multas pesadíssimas se o condutor tem certeza de que continuará impune? Não precisamos punir uns poucos com penas excessivamente pesadas. É necessário punir todos com penalidades justas. Países que reduziram a violência no asfalto investiram também na educação de trânsito e na melhoria do espaço viário.
A segurança das vias não deve ser ancorada exclusivamente na punição, como parece ser a tônica atual. Não é punindo uma criança que ela irá bem na escola. Primeiro é preciso explicar, ensinar quais os comportamentos certos e quais os errados. É necessário investir na formação dos novos condutores, fazer campanhas de esclarecimento para corrigir as enormes deficiências dos já habilitados.
No Brasil, é preciso melhorar o espaço viário, muitas vezes o principal responsável pelos desastres de trânsito. Infelizmente o governo nunca cumpriu sua parte, é mais fácil e conveniente atribuir toda a responsabilidade pelos desastres aos condutores irresponsáveis.
Apesar de ter assinado o compromisso com a ONU de reduzir à metade o número de vítimas entre 2011 e 2020, o governo brasileiro nada fez. Desde 1998 acreditou que tudo aconteceria por inércia. A violência no trânsito brasileiro continua crescendo e atingiu níveis insuportáveis. Enquanto a maioria dos países desenvolvidos reduziu as mortes, o Brasil caminhou na contramão. Nos últimos 12 anos, a mortalidade cresceu 55% e o número de feridos deu um salto ainda maior.
Cerca de 50 mil pessoas morrem por ano. Um milhão ficam feridas. São números tão indecentes quanto a leniência do governo em tratar o problema. Para ter uma ideia do descaso, a segurança de trânsito não foi mencionada uma única vez pelos candidatos na última campanha presidencial. As perspectivas, portanto, não são as melhores. O Código de Trânsito Brasileiro está envelhecendo antes cumprir o seu papel. Para combater o descaso, elevar o valor das multas não é suficiente. É preciso respeitar o código e a vida.
David Duarte Lima é professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília, presidente do Instituto Brasileiro de Segurança no Trânsito (IST) e um dos fundadores da ONG Rodas da Paz.
Publicado no jornal Correio Braziliense em 03/11/2014