Como os problemas do transporte público e a falta de apoio ao deslocamento não motorizado afetam os moradores do DF
Antes um termo técnico, a mobilidade urbana entrou na pauta política, virou assunto de conversa, ocupou páginas de jornais e mereceu inúmeros cartazes nas recentes manifestações que se alastraram pelo país. A escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo de 2014 transformou o tema em palavra de ordem. Transporte público, infraestrutura no trânsito e acessibilidade passaram a ser o maior desafio – e suposto legado – de cidades-sede como Brasília. A um ano do grande evento, pouca coisa avançou. Hoje, a qualidade exibida no setor virou uma das bandeiras de protesto.
O estudante Hariston Felipe Pereira participou de duas manifestações em Brasília reclamando da precariedade do transporte público no Distrito Federal. Morador de Brazlândia, ele perde duas horas e quarenta minutos dentro do ônibus para chegar ao Plano Piloto, onde trabalha como auxiliar-técnico. “Saio de casa às 5 horas para ter folga no tempo, pois o meu patrão não aceita mais a desculpa de que o ônibus quebrou quando justifico um atraso”, conta. De 0 a 10, Pereira dá a nota mais baixa para o setor no DF.
José Walter Vazquez Filho, secretário de Transporte do Distrito Federal, nunca encomendou uma pesquisa de aprovação dos usuários das redes de ônibus e metrô da capital e diz que nem precisa. “Já sei qual seria a resposta”, admite. Brasília é possivelmente a única metrópole do país em que as rádios fazem um ranking do número de ônibus enguiçados no horário de pico. Em uma única manhã, o jornalismo da CBN já contabilizou quinze ônibus quebrados nas ruas. “A cada dia, há pelo menos quatro”, diz Rafael Alves, repórter de trânsito. Segundo o Sindicato dos Rodoviários, a quantidade diária no DF é ainda maior: em média, quarenta veículos param por problemas mecânicos. Nas contas do secretário, 60% da frota de ônibus circula com a validade vencida. Pela lei, após sete anos de uso, o coletivo tem de ser substituído.
Vazquez Filho acredita que a contratação de outras empresas para operar no sistema e a renovação da frota de ônibus serão um grande avanço. O GDF sonha em pôr para rodar 2 600 coletivos novos até dezembro. Mas a licitação enfrenta uma batalha jurídica que emperra o processo. Na semana passada, depois de muito esforço, o governo lançou às ruas cinquenta ônibus zero quilômetro para atender Taguatinga, Estrutural, Ceilândia e Brazlândia.
Na cerimônia de entrega, o governador Agnelo Queiroz (PT) disse que a construção do corredor Expresso-DF Sul, sistema de ligação entre Santa Maria e o Plano Piloto, também vai contribuir para a melhora do setor. “À medida que oferecermos ônibus de qualidade, muita gente que usa transporte particular irá optar pelo público”, acredita.
No projeto de Brasília, Lúcio Costa previu que ela teria uma população de cerca de 500 000 pessoas. Já são 2,5 milhões. Outro milhão vem todos os dias para o Plano Piloto. Nesse ponto, as retas da cidade dão um nó. A simetria das linhas geométricas, símbolo da arquitetura modernista da cidade, não é nada amigável para quem quer se deslocar a pé ou de bicicleta – os dois modos de locomoção não motorizados fundamentais para fechar a conta de um sistema de transporte eficiente e sustentável.
Brasília foi planejada para carros individuais, não para bípedes. As calçadas e ciclovias, muitas em péssimo estado de conservação, somem. Falta sinalização. E as faixas de travessia são insuficientes, mesmo constituindo, com razão, um motivo de orgulho para a cidade – a primeira a levar a sério a preferência do pedestre, conseguindo reduzir pela metade o número de atropelamentos, após campanhas realizadas em 1996 e 1997. Cruzar sozinho um dos túneis que passam por debaixo do Eixão durante a noite é tarefa para destemidos. Também inexiste uma cultura de respeito aos ciclistas.
A advogada Maria Cláudia Canto Cabral, assessora no Palácio do Planalto, preparou-se durante seis anos para abandonar o carro e adotar a bicicleta como meio de transporte. “Eu me via diante de um dilema semelhante ao do slogan do biscoito Tostines. As pessoas dizem que não usam a bicicleta porque não tem estrutura. O governo não investe porque não existem muitos ciclistas. É preciso quebrar esse ciclo”, diz. Moradora da Asa Norte, ela leva os mesmos vinte minutos de bicicleta que costumava levar de carro. E não precisa nem mesmo abrir mão do salto alto. “As pessoas têm de agradecer e respeitar os ciclistas. Cada bicicleta na rua é um carro a menos que circula. Estamos caminhando a passos largos para o caos”, afirma.
Em longas distâncias, o ideal é que a bicicleta seja associada ao transporte coletivo. O assessor parlamentar Afonso Morais pedala de casa até a estação do metrô, em Águas Claras, e depois da Rodoviária do Plano Piloto até o Congresso, onde trabalha. Quando chove, Morais dobra a bicicleta e a coloca no porta-malas do táxi. O problema é conseguir um.
Os brasilienses contam com uma frota de 3 400 táxis. É a mesma desde 1979, quando a metrópole tinha metade dos atuais habitantes. A presidente do sindicato dos taxistas, Maria do Bomfim, diz que o problema é do engarrafamento. “Você deixa o passageiro e não volta. Vem daí a sensação de que não tem táxi”, diz. Em horário de pico, os automóveis chegam a enfrentar 10 quilômetros de congestionamento.
Artur Morais, professor de engenharia civil da Universidade de Brasília e especialista em transporte, lembra que a mobilidade foi negligenciada por décadas. “Se continuarmos dessa forma, as cidades vão parar”, acredita ele, para quem o que falta em Brasília é investimento em transporte não motorizado. Morais critica o Plano Diretor de Transporte Urbano e Mobilidade do Distrito Federal, de 2010. “Não adianta pintar ciclovias e continuar incentivando o uso do automóvel com duplicação de pistas, redução de IPI, construção de estacionamentos e oferta de IPVA zero para carros novos”, afirma.
Um projeto de mobilidade da UnB apresentou uma carta aberta listando algumas propostas. Dentre elas, um planejamento intermodal integrado, isto é, a associação de diferentes meios de transporte com integração de tarifa. O documento recomenda sistema sobre trilhos para eixos principais, além de uma rede de ciclovias e de bicicletários disponibilizados em lugares estratégicos, como edifícios públicos e estações terminais. Também prega reformas para as calçadas, que devem ganhar acessibilidade universal, e o uso de veículos sustentáveis no transporte coletivo, como ônibus elétricos. O nó da mobilidade é difícil de desatar, mas ainda há luzes no fim desse longo e engarrafado túnel.
Fonte: Veja Brasília