Ciclovia de papel, vidas de verdade

Publicado no Caderno Opinião do Correio Braziliense de 26/6/2014

UIRÁ LOURENÇO
Servidor público, ciclista por opção, conselheiro da Rodas da Paz

É lamentável que ocorra mais uma morte de ciclista no Distrito Federal, justamente na Estrada Parque Taguatinga (EPTG). Na chamada Linha Verde, as únicas cores realmente marcantes são cinza e vermelho. Pode-se considerá-la um exemplo bem acabado do modelo rodoviarista caro, atrasado e poluente de incentivo ao transporte individual motorizado, em detrimento dos modos coletivos e saudáveis.

A obra de mega-ampliação viária custou mais de R$ 300 milhões e previa corredor exclusivo de ônibus e ciclovia. Fiz o trajeto de bicicleta diariamente, por mais de um ano, de Águas Claras à área central de Brasília e acompanhei as etapas da ampliação. Passados alguns meses da conclusão da obra, a EPTG já estava novamente saturada, confirmando o círculo vicioso de incentivo ao automóvel, o que resulta em congestionamentos e perda significativa de qualidade de vida.

O prometido corredor de ônibus jamais funcionou de verdade. Além da falta de ônibus apropriados, com porta do lado esquerdo, os carros transitam impunemente pelo espaço que deveria ser exclusivo dos usuários de transporte coletivo. Na prática, quem opta pelo ônibus sofre com congestionamentos nas pistas marginais. Aos pedestres, as condições são hostis, sem calçadas. No período chuvoso, sobra lama nas laterais da pista, num cenário de desconforto e humilhação em que muitos acabam andando na pista, em meio aos carros.

No trajeto de bicicleta, é necessário estar sempre atento. Desde a saída de Águas Claras até o Eixo Monumental, há incontáveis pontos de conflito com os motorizados. E compartilhar com muitos carros a via em que o limite teórico é de 80km/h (na prática, muitos motoristas passam voando baixo a mais de 100km/h) não é tarefa para iniciante. Não à toa, enquanto avançavam as obras de ampliação, menos ciclistas eram observados no caminho.

A nítida impressão é de que os usuários de bicicleta foram afugentados em razão da ampliação do espaço aos carros. E o governo “esqueceu-se” de construir a ciclovia projetada. Aos que ainda optam pela mobilidade saudável, resta compartilhar o espaço com uma frota motorizada ainda maior e mais imprudente. Não bastasse a invasão do corredor de ônibus, muitos motoristas invadem o acostamento na tentativa de escapar do congestionamento, aumentando o risco aos ciclistas.

Vários grupos organizados, especialistas em mobilidade urbana e indivíduos exigem a construção da ciclovia na EPTG. Há inclusive frases pintadas nas passarelas que questionam a injustificada ausência da ciclovia. Mais interrogações se espalham em outros locais do DF em que o risco aos ciclistas é elevado, em razão da total falta de infraestrutura e de sinalização.

Passados alguns anos do governo que se intitula “referência nacional e internacional em ciclovias” e se compara a Copenhague e Amsterdã, a ciclovia da EPTG continua no papel, esquecida em alguma gaveta da burocracia governamental. Omissão governamental e imprudência motorizada resultam em insegurança aos que caminham e pedalam.

As inúmeras leis distritais que buscam incentivar a mobilidade saudável e garantir segurança aos que optam pela bicicleta são incapazes de mudar a realidade local. Mesmo as novas ciclovias padecem de erros graves, com bloqueios, descontinuidades, falta de iluminação e de sinalização. Outros pontos cruciais são as travessias das pontes, como a do Bragueto, e as ligações das cidades do DF ao Plano Piloto, por onde passam diariamente pessoas que usam a bicicleta por necessidade.

Linhas verdes de verdade primam pela segurança dos mais frágeis no trânsito — pedestres e ciclistas — e priorizam os modos coletivos de transporte. Amsterdã, Copenhague e outras capitais exemplares constroem um ambiente humano e saudável, que inclui redução do limite de velocidade dos motorizados, espaços seguros e contínuos aos que caminham e pedalam e restrição à circulação e ao estacionamento de automóvel, especialmente na área central.

Sobre uma bicicleta estão homens e mulheres que optam por um modo de transporte saudável e necessário ante o crescente caos motorizado. Pessoas de carne e osso que merecem respeito e incentivos reais. É motivo de indignação que Brasília se intitule capital das ciclovias e ainda ostente problemas graves e primários no sistema cicloviário. A pergunta final que fica: quantas mortes ainda serão necessárias para que se reveja o modelo rodoviarista vigente e se invista num modelo humano, seguro e saudável de mobilidade?

7 comments on “Ciclovia de papel, vidas de verdade

  1. Wellington disse:

    Boa tarde, Senhora Cristianne.

    Não se deve pagar o mal com mal correto? nada justifica a atitude deste “ciclista”. Nem mesmo a falta de educação dos pedestres que insistem em caminhar na ciclovia mesmo isto não sendo o correto.
    Enquanto pedestre, sei que muitas calçadas estão mal conservadas. Mas isso não dá o direito de quem acha que falta calçada desrespeitar o local correto. Infelizmente, por sermos brasileiros, pagamos o preço pela nossa “malandragem” e o famoso “jeitinho brasileiro”.
    Eu mesmo, faço minhas corridas pelas calçadas da asa sul (ao lado das ciclovias) e vejo sempre pedestres andando nas ciclovias…. nada justifica este ato de total falta de civismo! não estou julgando a senhora, mas acho que se todos soubéssemos que nosso direito acaba onde começa o do próximo, não viveríamos numa sociedade tão bagunçada.

  2. CARLOS FREIRE disse:

    Moro em Brasília ha muitas décadas e torna-se evidente que no planejamento urbano não constava espaços para pedestres…a cidade foi planejada para automóveis…tanto é verdade que não existem calçadas e as poucas que existem, em locais como na W 3 , não são cuidadas, transformando-se em verdadeiras armadilhas e pistas de obstáculos para os pobres e esquecidos pedestres. Com a implantação das ciclovias, o esquecido pedestre, subitamente se viu agraciado com “calçadas” que, infelizmente tratavam-se de ciclovias, as quais os pedestres, de certa forma, se apoderaram das ditas “calçadas”.
    Com certeza, criou-se uma nova área de atrito, onde o convívio compartilhado é delicado e onde todos tem razão e direitos. Sou ciclista, além de pedestre e motorista…e pagamos tanto imposto para assistir o crime que foi praticado, em nome da população, sem qualquer responsável a quem se possa cobrar a incompetência praticada na EPTG, mas que serve de exemplo à total falta conhecimento técnico e, no mínimo, a capacidade de contratar técnicos especializados, que são as pessoas indicadas a realizarem as obras…hoje temos que conviver com estas aberrações e o dinheiro dos impostos que, tão amargamente tivemos que desembolsar, jogado pelo ralo…não da EPTG pois, as bocas de lobo também foram esquecidas, por isso qualquer chuva cria verdadeiros rios…cada governante que aparece faz mais besteira que o outro…e nós bancamos tudo e ninguém é responsável…

  3. Rosana disse:

    Boa tarde, d. Cristianne! Eu como pedestre já deixei vários comentários em páginas do GDF no sentido de que as calçadas deterioradas devem ser consertadas, e construídas onde não existem. É o que todos nós, como pedestres, devemos reivindicar, e não ficar esperando que ajam por nós. Quanto mais gente demandando melhor.
    Caminhar na ciclovia envolve alguns riscos, como quando o pedestre muda de direção bruscamente e acaba “atropelando” um ciclista que venha atrás, já que a bicicleta é um veículo muito silencioso.
    As ciclovias acabam tão cheias de pessoas caminhando que o ciclista muitas vezes tem que pedalar na rua mesmo. E muitas vezes as calçadas estão boas bem ao lado…
    A atitude desse ciclista mal-educado que a senhora encontrou realmente é lamentável. Se essa pessoa estivesse dirigindo um carro certamente estaria fazendo isso com pedestres, motociclistas, ciclistas e até outros carros.

  4. Rodas da Paz disse:

    Olá Welligton!
    Realmente, num planejamento urbano bem feito cada um deve ter seu espaço garantido na cidade, mas para qualuqer situação vale lembrar dos princípios do Código de Trânsito e da Lei da Mobilidade Urbana, que afirmama que o maior deve ser respeitar o menor, independente de onde estejam! 😉

  5. Wellington disse:

    Lugar de ciclistas é na ciclovia e de pedestres é nas calçadas, ok. vamos respeitar para ser respeitado.

  6. Wellington disse:

    Moro em samambaia norte , uma das primeiras ciclovias de Brasília foi feita aqui, e acredite se quiser, até hoje a ciclovia não foi concluída, faltam as sinalizações e faixas de travessia , a ciclovia fica entre as quadras da qr 212/414 até a qr 202/402. Já fui várias vezes na administração de samambaia para saber de quem é a responsabilidade pela sinalização e nunca respostas. Além de tudo os perdestes não respeita o espaço que é destinado a circulação dos ciclistas, no local acontece muitos acidentes com pedestres e ciclistas. Peço uma ajuda para deixa a minha vida de ciclista melhor. Obrigado

  7. Cristianne Araújo disse:

    Prezados,Bom dia!Sou dona de casa, mãe, avó, 56 anos, moradora do sudoeste há 20 anos e caminho todas manhãs por recomendação médica. Diversas pessoas caminham, inclusive para trabalhar, em trechos das ciclovias. Existe um “ciclista” paramentado jogando seu veiculo de 2 rodas, na ciclovia da av. que desce entre as quadras 102 e 103, em cima dos transeuntes como forma de ameaça e intimidação, principalmente em direção das mulheres.como podemos ter uma convivência harmônica com esse tipo de “ciclista”?Tenho certeza que essa não é a orientação que essa ONG passa aos ciclistas do DF.Diante disso, peço encarecidamente que intercedam em prol dos mais frágeis nessa pirâmide do trânsito, nós que nascemos pedestres.Atenciosamente,Cristianne Araujocidadã pedestreResponder ↓

Comments are closed.