Por uma nova Visão do Transporte: A Sociedade em Duas Rodas

O texto que segue foi apresentado por Elizabeth Veloso [1] em junho de 2004, representando a Rodas da Paz no Seminário Internacional Políticas para melhorar a segurança no trânsito na América Latina e no Caribe.

Dez anos depois, a análise permance consistente e atual. Apesar de pequenas conquistas e da sociedade já ter começado a reconhecer a importância da bicicleta, ainda há muito o que avançar, principalmente no que se refere à atuação do poder público. A fim de comparação, inserimos alguns comentários [entre colchetes] com os dados atuais.

Jonas Bertucci, Janeiro de 2014

POR UMA NOVA VISÃO DE TRANSPORTE:

A SOCIEDADE EM DUAS RODAS

Elizabeth Veloso Bocchino, Junho de 2004

 Luiz Henrique Meireles. Robson Natividade Viveiros. Raimundo Araújo Bento, Márcio Pereira Freitas. Estudante, pedreiro, atleta, aposentado. Em comum, a opção por pedalar. Em comum, a morte que chegou mais cedo. Que veio sobre duas rodas. Sem avisar. Apenas alguns nomes para lembrar uma tragédia que se repete no trânsito do Distrito Federal. Pelo menos uma morte por semana. Parece até que somos uma cidade coalhada de bicicletas. Que elas estão em cada rua, em cada cruzamento, em cada esquina. Mas não. São poucas, tímidas, acuadas, diante de um trânsito que as ignora, numa sociedade que as despreza.

Brasília, definitivamente, é a cidade do automóvel. Bem ao gosto do capitalismo moderno, que faz com que a máquina torne-se extensão das pernas, outorgando não apenas uma identidade pessoal, mas uma identidade social às pessoas.

Na “Automovelcracia”, como define Eduardo Galeano, sobra pouco espaço para as bicicletas, por mais “magrelas” que sejam. “Andar de bicicleta pelas ruas das grandes cidades latino-americanas, que não têm ciclovias, é a forma mais prática de se suicidar”, prossegue o estudioso. Os números não o desmentem. Setenta mortos no ano passado. Mais de 250 nos últimos quatro anos [desde então, o número de mortes por ano vem se reduzindo lentamente, caindo para 27 em 2013]. Apenas números, que os motoristas também passam por cima, fazem vista grossa. Quem sabe, assim os ciclistas aprendem e recolhem-se ao seu lugar: os parques públicos. Nada como um passeio bucólico no final de tarde de domingo…

Mas não. A bicicleta não é a opção. É a falta de opção de quem não consegue pagar pelo bilhete do ônibus sujo e precário. Para a sociedade, o risco, que já manchava o asfalto, só adquiriu existência pública quando um grupo decidiu dizer “BASTA”. No cemitério, chorando a morte de um ciclista amigo, lamentando pelo futuro de um menino de três anos, que ali enterrava o pai. E assim nascia uma campanha social. Mais: uma entidade quase assistencial. Rodas da Paz. Assim queríamos que fossem todas elas: as do carro, as das bicicletas.

Desde fevereiro de 2003, lamentando perdas, transformando-as em denúncias, estampadas nos jornais. E Brasília descobriu, pela manchete do seu maior jornal de circulação, que era “uma cidade proibida para ciclistas”. Pedalar nas pistas era “querer morrer”, como provocou o motorista da Van do transporte alternativo, ao passar por nós. Não é raiva a palavra que vêm a boca como reação, mas ignorância, no sentido etimológico que lhe confere o dicionário.

Brasília, o berço da paz no trânsito, a cidade do motorista-cidadão, a capital da faixa de pedestre, desconhece os seus ciclistas. Pior, faz pirraça para eles. Que incômodo!!! A mídia enxergou. A cidade despertou. Em maio do ano passado, 1,5 mil ciclistas foram às ruas para pedir “respeito”. Para dizer: “eu existo”. Para pregar: “quero paz”. E propor: “podemos conviver”. Foi o lançamento da Campanha da Rodas da Paz. Foi o maior passeio ciclístico cívico que Brasília vira até então. As ações prosseguiram, se diversificaram, e a Rodas da Paz conseguiu novos parceiros, amigos da bicicleta. Audiências com ministros, Justiça, Esportes, Educação. Debate na Comissão de Transportes da Câmara dos Deputados; curso de extensão na Universidade de Brasília para que técnicos do DER aprendam a construir ciclovias e o façam ainda neste ano.

No aniversário de um ano da campanha, em maio de 2004, a família cresceu e o 2º Passeio Rodas da Paz reuniu 3 mil e quinhentos ciclistas. Já não são mais invisíveis no trânsito [em 2013, o passeio anual da Rodas da Paz teve a participação de 5 mil ciclistas, batendo seu próprio recorde]. O brasiliense começa a saber que a bicicleta é um veículo. Mais: que ali vai uma vida sem amortecedores. Sem escudo de metal. Respeito é a única proteção.

Pela força de seus voluntários, pela paixão que os move, pela crença e pela experiência que adquiriram em anos de “duelo no asfalto”, a Rodas da Paz e todos os grupos que a dão existência material fizeram-se ouvir. Em breve, no segundo semestre, o Detran instalará mais de 200 placas em todo o Distrito Federal com o símbolo da bicicleta e a frase: “Projeta a vida”.

As escolas de formação de motoristas reservarão um capítulo especial à mobilidade sustentável e os ciclistas vão percorrer as escolas públicas para ensinar uma lição diferente aos estudantes de todas as idades: uma aula de cidadania e respeito ao próximo.

Também no segundo semestre, a Frente Parlamentar do Trânsito Seguro da Câmara dos Deputados promoverá seminário para discutir e trocar experiências bem sucedidas de políticas cicloviárias municipais. Nesse campo, o Brasil tem muito a mostrar. O Manual de Planejamento Cicloviário atesta que a bicicleta é o veículo individual mais utilizado nos pequenos centros urbanos do país (cidades com menos de 50 mil habitantes), que representam, em número, mais de 90% do total de cidades brasileiras”.[2] Estima-se, no Brasil, a existência de uma frota de pelo menos 45 milhões de bicicletas. Ou seja, a cada quatro brasileiros, uma bicicleta.[3] [a estimativa atual é de mais de 80 milhões de bicicletas, ou seja, uma bicicleta a cada 2,5 pessoas]. Número que é consideravelmente maior se levarmos em conta as bicicletas de fabricação caseira.

Cidades como Joinville, em Santa Catarina; Santos, no litoral paulista; Linhares, no Espírito Santo e até a cidade maravilhosa saem na frente como modelos na preocupação com a adoção de rede cicloviária. Não são apenas ciclovias, mas uma série de medidas que viabilizam o uso seguro das bicicletas, apoiadas por legislação, campanhas educativas e infra-estrutura básica, formada por bicicletários e pistas específicas e bem sinalizadas.

São atitudes válidas, mas que passam bem longe do cotidiano dos grandes centros urbanos, onde a bicicleta deveria ser vista como alternativa “ao caos motorizado”, mas não é. China, Holanda, Noruega são realidades quase fictícias para os céticos de plantão. Imaginar ônibus e bicicletas compartilhando a mesma pista, como na Holanda, é quase propor um genocídio à moda brasileira.

Elaborado pela Comissão Europeia para o meio ambiente, o documento “Cidades para Bicicleta, Cidades de Futuro” apresenta inúmeras ações voltadas para uma política de promoção de bicicletas, a partir da constatação de que “a redução da utilização do automóvel tornou-se uma condição necessária para a manutenção da mobilidade em automóvel”.

Segundo o mesmo estudo, as bicicletas modernas são eficientes e cômodas. “Não poluente, silenciosa, econômica, discreta e acessível a todos os membros da família, a bicicleta é sobretudo mais rápida do que o automóvel em trajetos urbanos curtos, com até 5 km” [essa distância cresce com a redução da velocidade média nas grandes cidades devido ao aumento dos congestionamentos na última década].

Em abril passado, a Rodas apresentou ao Governo do Distrito Federal proposta de política de incentivo ao uso da bicicleta como meio de transporte, com ações de infra-estrutura, educação e fiscalização. O estudo será objeto de grande articulação entre as mais diversas secretarias, incluindo as de Educação, Transportes, Esportes e Obras. Há muito a se fazer. Algumas das propostas são: tornar obrigatório o uso de capacete por parte de ciclistas [embora o uso do capacete seja recomendado, hoje é sabido que a obrigatoriedade no seu uso não é considerada uma medida positiva em termos de segurança e incentivo ao uso da bicicleta, tendo tido resultados negativos nos países em que foi implementada – o que nos faz rever esta questão]; criar rotas seguras para a circulação de bicicletas; estabelecer uma malha cicloviária nos locais de maior demanda; obrigar os Detrans a promoverem ao menos uma campanha anual de esclarecimento sobre as leis de trânsito relativas à circulação de bicicletas; obrigatoriedade de que as fábricas de bicicletas que produzam a venda casada com uma cartilha educativa sobre as leis em vigor; fazer com que as fábricas produzam capacetes a preços populares.

O alicerce já existe. As estacas foram fincadas há oito anos, quando o Congresso Nacional aprovou o Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9.503/97.), uma das mais modernas legislações do mundo acerca do tema. O artigo 96 do Código regulamentou a bicicleta como veículo de passageiro e inúmeros outros explicitam direitos e deveres de ciclistas e de motoristas para com os ciclistas. Os 10 mandamentos da convivência pacífica no trânsito são:

Motorista:
–        Mantenha distância lateral de um metro e meio (1,50 m) do ciclista;
–        Reduza a velocidade ao ultrapassar o ciclista;
–        Dê a preferência ao ciclista;
–        Sinalize;
–        Não jogue nada no ciclista.

Ciclista, as leis também são para você:
–        Não ande na contramão dos carros;
–        Use capacete e equipamentos de segurança;
–        Pare na faixa de pedestre;
–        Atravesse na faixa como pedestre; [no caso das travessias onde há uma faixa vermelha indicando a continuidade da ciclovia, o ciclista tem preferência em relação aos carros e pode atravessar montado]
–        Seja prudente.

Entretanto, afora a lei, é do zero que devemos partir. O lançamento de ampla campanha na mídia, para informar o be-a-bá das leis, pode ser o início de uma mudança substantiva. Uma ruptura nos padrões atuais de comportamento. Mas a campanha precisa ser permanente e contínua. Chegar às salas de aula, às garagens de ônibus, às auto-escolas, ao transporte alternativo. Por outro lado, é preciso o compromisso explícito e inexorável das autoridades com a norma legal. Nosso código é sistematicamente rasgado sempre que um ciclista é agredido no trânsito. Ou quando ele mesmo “atropela” seus deveres como condutor de um veículo regulamentado. A fiscalização é essencial, embora inexistente, e sua irmã gêmea é a punição.

É preciso multar os motoristas infratores, e punir os que provocam mortes no trânsito. Como um alerta, um aviso de que a cautela, a prudência e o respeito são vacinas contra os acidentes. E que evitá-los é mais do que possível. É a única forma de se livrar de uma pena rigorosa, e não de uma “pseudo punição”, como a doação de cestas básicas. Uma vida não pode valer apenas um quilo de arroz, um pacote de feijão e algumas farinhas.

A não aplicação das leis por parte das autoridades, tanto no aspecto da educação, como da fiscalização, é a gênese da animosidade que existe hoje entre ciclistas e motoristas no espaço igualitário e democrático que deveria ser o trânsito. Dessa lacuna surgiram movimentos internacionais, como a Bicicletada, que já chegou à Brasília e tenta impor, pela presença ostensiva, o respeito nas ruas para os ciclistas.

No artigo “Bicicleta e Tempo de Contestação, Leo Vinícius Maia Liberato observa que “(…) a bicicleta tem surgido como elemento ao mesmo tempo de uma contestação e de uma alternativa a problemas ecológicos, sociais e existenciais, além de potencialmente portadora de uma distinta significação de tempo.”

Tempo em que é preciso repensar valores, romper mitos, recriar novos paradigmas. Apostar num novo modelo, mais libertário e perturbadoramente mais igualitário. Não é preciso abdicar o homem de seu ícone da segregação social: o automóvel como elemento definidor de classes e outorgador de status e poder social. Basta que se dê chance a uma certa nostalgia em que carrega valores de outrora.

Como dizia o historiador Eric Hobsbawn, em “Tempos interessantes: uma vida no século XX”:  “Desça desse ônibus. Ele jamais será seu. Compre uma bicicleta por dois pence por dia”. Na explicação, o historiador lembra que “se a mobilidade física é condição essencial da liberdade, a bicicleta talvez tenha sido o instrumento singular mais importante, desde Gutenberg, para atingir o que Marx chamou de plena realização das possibilidades de ser humano, e o único sem desvantagens óbvias”. Segundo Hobsbawn, “os ciclistas se deslocam à velocidade das reações humanas e não estão isolados da luz, do ar, dos sons e aromas naturais”. O mundo perfeito.

Se temos inveja desses anos 30 a que se refere o historiador, nos miramos também na atualidade de Bogotá, onde a magia da bicicleta transforma em ciclovias de domingo 120 quilômetros das principais avenidas e ruas da cidade, por onde circulam 2,2 milhões de pessoas. Sem dúvidas, outras cidades latino-americanas estão dando os primeiros passos em direção à cultura das bicicletas, como San José de Costa Rica, que abriga um milhão de habitantes.

Brasília sempre foi vista como a cidade do poder, ou dos poderosos. Das negociatas, ou dos marajás. Mas é também onde os melhores atletas do país treinam nas largas, monumentais e planas avenidas, onde chove pouco durante o ano todo.

Pena que, segundo o senso demográfico, a quantidade de automóveis seja suficiente para transportar, confortavelmente, toda a população — 2,1 milhões de habitantes [estimada em 2,7 milhões em 2013]. É a população mais motorizada do País. Para cada quatro pessoas, há um carro na rua [em 2013 temos cerca de um carro para cada 2,5 pessoas]. Sobra muito pouco para pensar a bicicleta. Em Amsterdã, por exemplo, 30% das viagens ao centro da cidade são feitas sobre duas rodas.

A questão é aonde e como queremos chegar. Ao menos uma resposta não inspira qualquer dúvida: a um trânsito mais civilizado e humano, que reserve a todos, indistintamente, o direito de ir e vir. E de pedalar.

 

 


[1] Elizabeth Veloso Bocchino é jornalista, uma das vencedoras do Prêmio CNT de Jornalismo pela campanha “Paz no Trânsito de 1996 e foi a primeira presidente da ong Rodas da Paz.

[2] Manual de planejamento cicloviário. _ 3.ed.ver. e amp. _ Brasília: GEIPOT, 2001, 126 páginas

[3] Frota estimada, no ano de 2000, pela Associação Brasileira de Fabricantes de Motocicletas, Ciclomotores, Motonetas e Bicicletas (Abraciclo), conforme consta na publicação supracitada.